Cultura e Práticas Culturais



Ao relatar os comportamentos de habitantes da Índia, o antropólogo Marvin Harris (1978) descreve a veneração às vacas, indicando que os indianos as têm como o símbolo de tudo o que é vivo. É comum no povo da Índia a afirmação de que a morte humana por inanição é preferível mil vezes ao abate de uma vaca. Esse amor ao animal bovino há muito é motivo de incompreensão para diversos antropólogos e especialistas na cultura indiana, visto que, devido a esse endeusamento da vaca, pessoas morrem de fome e a pobreza é agravada ininterruptamente. Técnicos afirmam que essa veneração ao animal reduz a eficiência na agricultura, é a principal causa entre motins e conflitos entre os indianos e muçulmanos, além do fato de o animal competir com o alimento dos homens, pois alimenta-se fartamente de vegetais diversos (Harris, 1978). Nesse contexto, seria a Análise do Comportamento capaz de explicar o controle de comportamentos aparentemente tão irracionais?


Entre os mais diversos grupos humanos existentes no planeta, é notável a diferença de comportamentos e de culturas que permanecem entre seus integrantes por séculos. Em países muçulmanos, as mulheres cobrem os rostos e obedecem veementemente seus maridos, enquanto o Brasil é conhecido por fabricar os menores biquínis do mundo e pela desenvolvida emancipação da mulher. Como sabemos, a história de cada sociedade, ao interagir com a multiplicidade de ambientes do mundo, seleciona padrões distintos de comportamento e nos faz agir de formas extremamente diferentes. Ou seja, os muitos grupos de seres humanos que habitam a Terra, passam por diferentes estimulações e desenvolvem diversificados tipos de cultura, pois em cada região, estes se deparam com demandas distintas. De acordo com cada demanda ambiental, os grupos como um todo tendem a se adaptar para que a sobrevivência da espécie seja possível. Porém, quando falamos em comportamentos grupais, há mais do que a simples diversidade ambiental controlando comportamentos múltiplos. Um grupo, quando age em conjunto, desenvolve comportamentos que são passados de geração em geração, e, tal como a seleção natural de genes age na evolução filogenética, um grupo é capaz de transmitir comportamentos operantes, caracterizando uma evolução cultural (Baum, 1994).


Segundo Durkhein (citado por Wright,1996) a natureza humana é meramente o material indefinido que o fator social molda e transforma. Para Skinner (1953) a cultura a qual o indivíduo tem acesso quando nasce é composta de todas as variáveis que o afetam e que são dispostas por outras pessoas. Assim, cultura é definida como o comportamento operante de um grupo, tanto verbal como não-verbal e que gera consequências para o grupo como um todo e para seus integrantes individualmente (Baum, 1994).


Para muitos analistas do comportamento, a cultura é considerada algo exclusivo da espécie humana. Assim como o conjunto de genes existentes no DNA do homem, a cultura também possui traços culturais que são passados adiante para gerações futuras (Baum, 1994). Moore (2008) esclarece que a linguagem exerce papel fundamental na transmissão de qualquer pratica cultural para outras gerações. Ou seja, da mesma forma que, em nível filogenético, a genética é o replicador de características anatômicas dos organismos e em nível ontogenético, o sistema nervoso é o replicador de comportamentos no organismo; em nível cultural, a linguagem exerce o papel de replicador de práticas culturais para gerações futuras.


         O principal fator que diferencia a cultura do ser humano em relação a outros animais é a possibilidade de reforço social. Este é um reforço condicionado, adquirido culturalmente, que ajuda diretamente na modelagem de comportamentos e é liberado por meio de atenção, aplausos, elogios, abraços, etc. Os reforçadores sociais são extremamente poderosos, pois têm possibilidade de liberação rápida e saciedade lenta (Baum, 1994). Sempre que uma criança emite um comportamento desejável, por exemplo, o pai pode fazer um elogio contingente ao seu comportamento, o que proporcionará aumento de freqüência deste comportamento e assim por diante. Contudo, o reforço social proporciona à modelagem de comportamentos humanos um grande diferencial em relação a outras espécies, fazendo com que habilidades sejam mais facilmente desenvolvidas.
         O reforço social é um item muito importante para a manutenção da cultura humana. Segundo Baum (1994) esta é chamada de cultura plena, diferente da cultura só por imitação característica de animais não-humanos. Mas há mais dois itens essenciais para a existência destas duas, que o autor denomina imitação e limites do estímulo. Por meio da imitação as possibilidades de acerto se tornam muito maiores, pois, ao observar comportamentos bem sucedidos das pessoas presentes no mesmo ambiente social, menos tentativas mal sucedidas serão necessárias até a emissão da correta. Por exemplo, se uma pessoa observa outra riscando um fósforo numa caixa e por conseqüência esta obtém fogo, a primeira tenderá a imitar o comportamento da segunda quando precisar de fogo, sem precisar tentar de outras maneiras. Com isso os comportamentos mais adequados para aquele grupo, naquele ambiente específico, tendem a se manter, facilitando assim a sobrevivência da espécie.


Os limites do estímulo se referem ao potencial físico básico que cada ser vivo necessita para se manter no grupo e adquirir certo tipo de repertório comportamental típico de sua espécie. O ser humano nasce com um preparo genético de modo a ficar sob controle de estimulações características da espécie humana, e desenvolverá habilidades que possibilitarão sua sobrevivência. Mas sem a estimulação do grupo essas habilidades não seriam desenvolvidas (Baum, 1994). O comportamento sexual é um exemplo disso. A grande maioria dos seres humanos nasce com o corpo e seus órgãos genitais potenciais para o sexo, eles passarão por um desenvolvimento e em certa fase da vida terão possibilidades de manter relações sexuais. Mas para que seja possível obter relações, um repertório comportamental é necessário. O indivíduo só irá desenvolvê-lo com a estimulação ambiental, ou seja, condicionamento operante.


A possibilidade de se passar conhecimento de um membro para o outro, quebrando uma barreira cronológica, talvez seja a maior e mais especial característica das culturas humanas. É comum nas sociedades em geral, observar pessoas mais velhas instruindo as mais novas de acordo com sua história de vida pessoal. É através deste conhecimento passado adiante que costumes antigos permanecem até hoje em diversas culturas. Afinal, este tipo de saber transcende a existência de membros de um grupo e são transmitidos para grupos das próximas gerações (Baum, 1994). O ambiente físico, com suas demandas peculiares, estabelece algumas relações de reforço para as pessoas que ali habitam. Por exemplo, usar chapéu em uma região tropical, na qual a presença do sol é freqüentemente forte e o clima quente, costuma se apresentar como um comportamento adaptativo, pois a pele e os olhos de quem usa chapéu nesta região permanecem mais bem conservados e saudáveis. As pessoas, ao notarem esta relação de reforço, agora podem passar a emitir tal comportamento e evitar o desgaste da pele para aprender tal relação de contingência. Basta observar os outros integrantes do grupo se comportando desta forma, e este tipo de conhecimento será passado para seus filhos, netos e assim por diante, por meio de regras e modelos.


Para os analistas do comportamento, o termo prática de reforço é utilizado somente para se referir a estas relações de reforço, existentes na cultura humana. Conhecer uma cultura seria conhecer suas relações de reforço e punição (Baum 1994). O termo prática cultural se refere a um conjunto de ações coordenadas, formado pelos comportamentos operantes de membros de um grupo, que se relacionam a um ambiente comum aos membros (Todorov, 2005).
       O comportamento de um indivíduo tende a se conformar aos padrões sociais quando certas respostas são reforçadas pelo grupo e outras punidas ou não reforçadas (Skinner, 1953). O reforço social modela o comportamento que for “normal” para aquela cultura. Porém, as práticas culturais nem sempre têm suas relações de reforço bem evidentes, ou seja, há alguns comportamentos que são muito presentes em uma determinada cultura e ninguém se lembra mais que motivos levaram as pessoas a se comportarem desta forma. Muitas vezes elas permanecem em uma ambiente pelo fato de proporcionarem outros reforçadores, diferentes do objetivo inicial (Skinner, 1953). Por exemplo, quando a família real portuguesa chegou ao Brasil em 1808, todos usavam roupas quentes, revestidas de muitas camadas de tecido. No ambiente em que esta família vivia antes de chegar à América, a Europa, o clima era temperado, ou seja, com longas épocas de neve, frio e chuva, o que justificava o uso de roupas quentes, que garantem a proteção contra o frio. Mesmo estando no Brasil, região tropical, com longas temporadas de calor, aquelas pessoas mantiveram seus hábitos de vestimenta, pois estes não eram só sinônimos de proteção contra o frio. Tais comportamentos também produziam reforçadores sociais, como status social e fortalecimento de uma hierarquia existente em sua região de origem.


       Então, ao olharmos etnocentricamente culturas diferentes das que estivemos inseridos, certos comportamentos podem parecer ilógicos se não analisarmos historicamente as relações de reforço que os mantém. O amor à vaca dos indianos, já anteriormente citado, é esclarecido por Harris (1978), que ao analisar mais especificamente essa cultura, mostra que tal comportamento não parece ser tão irracional assim. Afinal, as vacas, ao contrário do que muitos acreditam, são um alicerce para a agricultura do país, já que são utilizadas como carros-de-boi na aragem da terra e pelo fato de a maioria dos indianos não possuírem recursos para comprar um trator. Além disso, o rebanho indiano produz 700 milhões de toneladas de esterco, que são utilizados como fertilizante; podem substituir a lenha na cozinha e são usadas como cimento na construção de casas. Os malefícios relatados por alguns especialistas, segundo Harris (1978), são inócuos à comunidade da Índia, visto que os alimentos vegetais das vacas constituem-se de subprodutos não comestíveis aos humanos. Outro fator importante, é que mesmo se algum indiano abatesse sua vaca, ele ganharia apenas uma pequena quantia de moedas, fazendo pouca diferença em seu orçamento mensal. Ao matar a vaca, o agricultor perderia muito mais em seu lucro posteriormente. Embora alguns indianos não tenham conhecimento dos reais benefícios econômicos que o amor à vaca promove, tal fé na divindade bovina, mesmo que indiretamente, tornou-se um comportamento adaptativo para sua população.

As práticas culturais constituem qualquer cultura humana, pois todas estão associadas a leis comportamentais, como reforço, punição, extinção, entre outras (Baum, 1994). Isso significa que os processos comportamentais são os mesmos em todo lugar (Skinner, 1953). As contingências de reforço estão presentes frequentemente na relação dos indivíduos com o ambiente, tanto físico como social, mesmo muitas vezes eles não tendo consciência delas. A consequência reforçadora justifica o comportamento e a sua frequência. Estas contingências individuais, dentro de uma cultura ou grupo, produzem consequências diversas para as pessoas que se comportam individualmente. Mas elas unidas também podem proporcionar uma conseqüência comum para o grupo, são as contingências entrelaçadas (Todorov, 2005). O autor explica que uma contingência individual pode afetar outras contingências individuais, e seu elo principal, que explica o entrelaçamento, é a conseqüência comum gerada por todas. As contingências de reforço individuais dos integrantes de um grupo, ao se entrelaçarem, constroem um produto final diferente do que se não estivessem juntos; este produto é chamado de produto cultural. As mudanças ocorridas no ambiente pelo comportamento agregado dos membros de uma sociedade (produto cultural) podem funcionar para, no futuro, fortalecer estes mesmos comportamentos, selecionando-os em relação aos outros que se mostraram disfuncionais (Andery e cols., 2005).

Harris (1978) descreve inúmeros rituais que se estabeleceram dessa forma e que, por conseguinte, também tornaram-se produtivos para as comunidades. Há culturas, por exemplo, que mantêm ciclos de guerras e de cuidados com a terra, que a princípio possuíam fundo religioso, mas que, consequentemente, beneficiam a população e a sobrevivência do meio ambiente em que vivem. O antropólogo acredita que certos detalhes de algumas crenças religiosas podem se estabelecer a partir de eventos históricos ou até de escolhas individuais feitas em uma cultura, mesmo estas não tendo vantagens ou desvantagens custo-benefício perceptíveis previamente (Harris, 1989). O autor possibilita também a reflexão de que crenças “irracionais” podem adquirir esse rótulo indevidamente, visto que, comportar-se supersticiosamente pode ser produtivo para essas culturas, mesmo que indiretamente.




Por fim, a Análise do Comportamento tem se mostrado com amplo potencial para auxiliar o governo em questões sociais problemáticas, a partir de um planejamento cultural (Baum, 1994). Os estudos sobre metacontingência (termo que será melhor explicado em futuras postagens) têm apresentado ferramentas importantes para o desenvolvimento das culturas humanas, somando a preservação da espécie humana com a do meio ambiente do planeta em geral. Para Baum (1994), “o cruzamento seletivo está para seleção natural assim como o planejamento cultural está para evolução cultural” (p. 286). Cada pessoa em sua individualidade pode aprender os comportamentos mais produtivos para seu grupo social e ter consciência de como seus comportamentos podem influenciar a vida dos outros, tanto para melhor como para pior


Por: Maíra Matos Costa


Referências Bibliográficas

Baum, W. M. (1994/2007). Compreender o Behaviorismo: Comportamento, cultura e evolução. 2ª edição. Porto Alegre: Artmed.

Harris, M. (1978). Vacas, Porcos, Guerras e Bruxas: os enigmas da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Harris, M. (1989). Our Kind: who we are, where we came from, and where we are going. New York: HarperCollins.

Skinner, B.F. (2007). Ciência e Comportamento Humano. 11ª edição. São Paulo: Ed. Martins Fontes.

Todorov, J. C. (2005). Análise Experimental do Comportamento e Sociedade: Um novo foco de estudo. In: Todorov, J. C., Martone. R. C. & Moreira, M. B. Metacontingências: Comportamento, cultura e sociedade. Santo André: ESETec.

Todorov, J. C., Moreira, M. B. & Moreira, M. (2005). Contingências Entrelaçadas e Contingências Não-Relacionadas. In: Todorov, J. C., Martone. R. C. & Moreira, M. B. Metacontingências: Comportamento, cultura e sociedade. Santo André: ESETec.

Wright, R. (1996). O Animal Moral. 1ª edição. São Paulo: Ed. Campus.

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