TDAH: um transtorno real ou fictício?




O que fazer com crianças agitadas, inquietas, desobedientes e desatentas demais numa sala de aula? Esta é a mais recorrente pergunta da atualidade entre pais e professores de crianças com estes padrões de comportamento. A fim de compreender e solucionar tal problema, profissionais da saúde passaram a definir a agitação e desatenção extremas como Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). A definição deste diagnóstico tem crescido avidamente e, segundo alguns estudiosos, pode inclusive ser caracterizada como uma epidemia, fato este que traz bastante curiosidade aos pesquisadores. Afinal, onde estaria a causa para toda essa agitação e desatenção infantil? 



Segundo Santos e Abreu-Vasconcelos (2010) uma compreensão multidisciplinar se faz relevante quando se fala em padrões de comportamentos relativos ao TDAH. Afinal, para compreender uma prática que se torna frequente dentro de uma cultura, diversos aspectos devem estar relacionados ao fenômeno. A “explosão do TDAH” nas crianças do mundo trouxe consigo muitas suspeitas e conduziu a comunidade científica a uma reflexão crítica dos métodos de avaliação que estão sendo utilizados. Afinal, parece difícil compreender um crescimento tão acentuado de diagnósticos em tão pouco tempo, desde os primórdios do estudo do comportamento. Além disso, parece haver uma estranha dicotomia, ainda pouco esclarecida, nas definições deste tipo de transtorno.




De acordo com Signor (2013), o assunto é polêmico, pois, há autores que defendem que “o transtorno seria decorrente de um aporte insuficiente de determinados neurotransmissores ao cérebro, especialmente dopamina e norepinefrina. Tal ineficiência ocasionaria uma disfunção na parte frontal do cérebro, responsável, entre outras funções, pela inibição comportamental” (p. 1146). Por outro lado, há uma linha de pesquisadores que entendem este diagnóstico com uma perspectiva sócio-histórica, e que o chamado TDAH representaria um processo de patologização da educação, transformando questões meramente sociais, educacionais e políticas em questões médicas.

O que se pode afirmar, de fato, é que, as pesquisas existentes hoje nas áreas da saúde, principalmente pesquisas médicas, apontam para dados extremante inconclusivos e os métodos utilizados nestes estudos têm sido o principal alvo de críticas entre profissionais da psicologia, da educação, entre outros. Segundo Schmitz, Polanczyk e Hutz (2003), os estudos a respeito do TDAH ganharam força a partir dos anos 90 e ainda hoje suas causas podem ser consideradas desconhecidas. Tais pesquisas procuram respostas para o desajuste comportamental dentro do organismo, buscando justificar padrões TDAH através de insuficiências cerebrais, do desenvolvimento, alimentação ou causas genéticas. E, como relatam os autores, parece improvável haver um “gene do TDAH” causador desse tipo de fenótipo.


Os estudos epidemiológicos sobre o TDAH indicam que 3% a 9% das crianças norte-americanas em idade escolar apresentam padrões de comportamentos relativos ao transtorno, sendo mais frequente em meninos do que em meninas (DuPaul, Stoner, 2007). No Brasil, estudos longitudinais em crianças brasileiras corroboram estes índices e apresentam uma crescente nos diagnósticos médicos para pessoas com este tipo de comportamento (Santos e Abreu-Vasconcelos, 2010). Para compreender melhor como estas pesquisas são realizadas, os autores explicam que três maneiras são as mais utilizadas: (1) estudos de caso, (2) estudos longitudinais ou (3) estudos retrospectivos. Em todos os tipos, se utiliza uma noção de normalidade (curva normal) e costuma-se utilizar o delineamento de grupos, onde se compara os resultados entre dois ou mais grupos de participantes, a partir de uma média de seus resultados. 

Para Schmitz e cols. (2003), os três métodos de pesquisa apresentam problemas metodológicos decisivos em estudos sobre comportamento. Os estudos de caso, por exemplo, que consistem em relatos de pais e médicos, possuem desvantagens como informações originais incompletas, má memória das informações, a escolha não aleatória dos casos, além de longo tempo de pesquisa. Os estudos retrospectivos, que se baseiam na análise de prontuários antigos, não conseguem definir quais crianças pertencem a quais grupos, pois não especificam acuradamente as características de cada um. E os estudos longitudinais, embora sejam os menos inadequados, lidam com dados referentes a um sujeito mediano, o que ignora as diferenças pessoais, além de serem mais difíceis de serem implementados logisticamente. Ademais, Richter (2013) explica que:

“Médicos realizam o diagnóstico através de questionários aplicados aos pais, aos professores e, eventualmente, ao paciente, podendo incluir testes neuropsicológicos. Nesse aspecto, é importante ressaltar que, tanto o processo que leva ao médico a decidir pelo diagnóstico quanto o depoimento dos pais ou professores, depende do juízo de valor de cada um. Aquilo que pode vir a ser julgado como ‘normal’ para alguns, pode não ser para os outros (...)” (p.14).


Sendo assim, considera-se que a forma com que o problema está sendo abordado nos deixa diante de mais dúvidas ainda. Afinal, DuPaul e Stoner (2007) explicam que a disfunção no lobo frontal que os médicos tanto falam e pesquisam, não serve para compreender muita coisa, pois tal diagnóstico não explica se a perda foi a causa de comportamentos desajustados ou consequência de uma má estimulação de comportamentos naturais da criança. Moysés (2001, citado em Signor, 2013) explica que o diagnóstico é meramente clínico, que utiliza como base pesquisas estatísticas, referentes a um “sujeito médio”, o que não fornece nenhuma informação relevante para dados relativos à saúde. Para Richter (2012), a divulgação de pesquisas como estas fez com que o termo “hiperatividade” se tornasse banalizado nas instituições e serve para classificar comportamentos comuns na infância, como falta de educação, oposição, curiosidade e criatividade.

Para estudos mais confiáveis nesta área, Kantowitz, Roediger III e Elmes (2006) explicam que o delineamento do sujeito como seu próprio controle “é mais eficiente, pois cada indivíduo é comparado consigo mesmo. Qualquer diferença resultante de uma citação versus cinco repetições não pode ser o resultado de diferenças entre as pessoas nos dois grupos, como poderia ser o caso para o delineamento de grupo” (p. 67). Mas, para Caliman (2008), o fato destes profissionais terem um foco quase que unicamente organicista para o problema, negligenciando fatores ambientais que exercem influência sobre o fenômeno, dificulta estudos que respeitem as diferenças entre os indivíduos, sendo levados a buscar afirmações simplistas a partir de médias estatísticas.


Contudo, apesar de métodos que dificultam a identificação etiológica do problema, a incidência das pesquisas relativas ao TDAH evidencia, de fato, a existência de uma tendência maior das crianças da atualidade a se comportarem de maneira diferente às de décadas atrás. Estariam, verdadeiramente, nossas crianças mais agitadas e desatentas do que de costume? Provavelmente sim, mas o problema parece ser bem mais amplo e complexo do que se imaginava. A fim de compreender como são estes comportamentos, DuPaul e Stoner (2007) apontam que o que se identifica nas crianças que procuram o neurologistas com suspeitas de TDAH, geralmente, têm comportamentos classificados em três tipos:


1) Tipo predominantemente desatento: neste caso, a falta de atenção é característica mais forte nos comportamentos da criança em sala de aula, o que costuma atrapalhar a finalização de trabalhos independentes, ao seguimento de regras, fracasso escolar, desorganização e acompanhamento das explicações da professora em grupo;


2) Tipo predominantemente hiperativo-impulsivo: neste caso, dois tipos de comportamentos são relevantes. O primeiro, a impulsividade, refere-se a ações como, falar sem permissão, conversas paralelas constantes, dificuldade de aceitar reprimendas ou tarefas desinteressantes. O segundo tipo de comportamento é a hiperatividade, que fica evidente ao notar que a criança sai muitas vezes da cadeira, brinca com objetos inapropriados, batuca com os dedos, mexe os pés rapidamente, entre outros;


3) Tipo combinado: neste caso, todos os padrões de comportamento citados acima costumam aparecer com maior ou menor freqüência ao longo do desenvolvimento da criança.

Obviamente, tais comportamentos são reais e muitos pais, ao lerem as informações supracitadas, horrorizam-se ao perceber que seus filhos apresentam grande parte destes comportamentos, em contextos diferentes. Afinal, tais características parecem ser bastante amplas para definir um diagnóstico tão específico. Além disso, é difícil encontrar uma criança que não se encaixe, de alguma forma, neste quadro. Sendo assim, os pais costumam se sentir confusos, sem saber como implementar limites adequados em seus filhos demasiadamente inquietos (Rischter, 2012). 

Caliman (2008) esclarece que a obscuridade deste assunto não é de hoje e são muitos os aspectos que caracterizam o TDAH como uma “polêmica internacional”. Como explicar, por exemplo, o fato de que, só na década de 2000, 7% da população americana já havia sido diagnosticada com déficit de atenção e hiperatividade? Ou ainda, qual fator justifica o aumento exorbitante e desproporcional de diagnósticos e prescrições de estimulantes a base de metilfenidato (Ritalina), em menos de duas décadas? Segundo The New York Times, em 1999, a produção deste remédio apresentava um aumento de 700%, hoje o índice chega à 900%. 


Conhecida como “a droga da obediência” a Ritalina possui efeitos colaterais fortes, causa extrema dependência, com reações muito parecidas com o uso da cocaína. Mesmo assim, a droga virou coqueluche nas clínicas psiquiátricas e escolas de primeiro grau, pois, de fato parece apresentar sinais milagrosos de eficiência quando se trata de “colocar a criançada nos eixos” (Caliman, 2008). Moysés (em entrevista à Globo News), explica que o efeito-obediência que acontece com crianças que ingerem este medicamento é conhecido em farmacologia como “efeito-zumbi”, o qual, segundo os estudos em farmácia, significa alta toxicidade, isto é, reações adversas demasiadamente sérias que acontecem em todos os sistemas do organismo. A criança fica em estado de dopping, permanecendo mais calma e concentrada.


Inegavelmente, compreende-se que em um grupo de crianças, diferentes padrões de comportamentos são apresentados entre os pequenos em sala de aula. Qualquer tipo de educador infantil lida diariamente com crianças que se mostram muito mais enérgicas do que outras. E de fato, elas são mesmo muito diferentes entre si. Cada ser apresenta mais facilidades para alguns conteúdos e limitações para outros tipos de atividade. Para compreender a diversidade de comportamentos entre as crianças, a Análise do Comportamento explica a modelagem de comportamentos em três níveis, (1) o biológico (filogenético), em que compreende o organismo com um potencial para se comportar relativo à sua história evolutiva, ou seja, ele vem com um arcabouço físico básico para desenvolver certos comportamentos; (2) a sua história individual de reforçamento (nível ontogenético), que compreende que cada ser no mundo (mesmo gêmeos idênticos) passa por tipos de estimulações idiossincráticas e (3) as práticas culturais estabelecidas socialmente (nível cultural), ou seja, as normas aceitas ou rejeitadas pelo grupo em que o indivíduo nasceu, por exemplo, a família e a região de nascimento. Assim, podemos dizer que cada criança tem uma história única de estimulação, o que justifica padrões específicos de comportamento, diferente dos demais (Skinner, 1953).


Um aluno que possua mais habilidade verbal do que os outros, por exemplo, não faz com que aqueles que apresentam maior dificuldade na língua portuguesa sejam classificados como enfermos ou “transtornados”, a ponto de tomar uma droga que o coloque no mesmo padrão daqueles que se expressam bem. Afinal, este aluno que não tira boas notas em português pode ser mais hábil com esportes, ou geografia, por exemplo, e, quando este precisar desenvolver sua literatura, terá um pouco mais de dificuldade, mas poderá usufruir de técnicas diferentes de estimulação, as quais se adéquam às suas dificuldades pessoais. Quando se fala em desajuste comportamental, a palavra “desajuste” nos remete a algo que é aceito como um padrão de comportamento correto do grupo em que o indivíduo se insere, e os conceitos de “certo” e “errado” podem ser relativos quando se trata de comportamentos em desenvolvimento.

Richter (2012) promove uma reflexão a respeito da relação imposta de “docilidade-utilidade” da escola com o aluno, a qual faz com que o comportamento obediente seja naturalizado, ignorando as diferenças individuais do sujeito em formação. “Pergunto-me se não é porque entendemos o comportamento obediente, a postura de bom aluno, como basais para que o dia-a-dia escolar transcorra normalmente, que talvez tenhamos patologizado o comportamento inquieto, desobediente” (Richter, 2012, p.11). 

A autora questiona o papel da escola na atualidade, que mantém uma cultura derivada da idade média, de aulas expositivas, leituras maçantes, obrigatoriedade de ensino e metas a serem cumpridas, a qual se choca com o que ela chama de cyber-infância. Na chamada cyber-infância, as crianças desde a mais tenra idade têm acesso a tecnologias e a uma infinidade de informações, as quais desenvolvem em seus repertórios um tempo de espera diferente do que o de décadas (ou séculos) atrás (Richter, 2012). Ou seja, diante de eventos acontecendo tão rápido, os jovens não aprendem a esperar adequadamente para ter acesso ao reforço e não se interessam por atividades laboriosas e/ou extensas demais. Os pais, nesse contexto, que também não foram educados nesta cultura tecnológica, se vêem desprovidos de modelos eficientes de educação para seus filhos. “Vê-se na cyber-infância certo perigo, talvez por não se ter produzido um saber suficiente para controlá-la ou porque não se consegue melhor governá-la” (Dornelles, 2005, p. 78, citado em Richter, 2012).


Segundo Signor (2013), ao analisar os “sintomas” referentes ao TDAH é possível notar que a maioria deles consiste em comportamentos que não podem ser observados em consultas clínicas, eles são apenas relatos verbais de pais e, principalmente, de professores. Freitas (2007) realizou um amplo trabalho para analisar como as escolas vêm lidando com alunos inquietos e quais recursos elas utilizam para lidar com as dificuldades destas crianças. A autora relata que as verbalizações mais constantes são, por exemplo, “aquele menino é bagunceiro”, “não aceita não”, “não para”, “é hiperativo”, “não presta atenção”, “é desobediente”, entre outras. Através das falas das docentes, Freitas (2007) observou que o foco estava sempre para o aluno, considerado um “aluno-problema”, negligenciando o método de ensino e os contextos em que aqueles comportamentos aconteciam, os quais, estes sim, parecem realmente estar desajustados. Para a autora o que não se costuma levar em consideração é que não são as crianças, necessariamente, que são desatentas ou hiperativas, mas que há um amplo desinteresse e sofrimento à maneira como o conteúdo é passado nas escolas. 

Sousa-Neta (2006) explica que a noção de saúde e doença, advinda da história de medicina, também veio a influenciar questões mais amplas do que tal disciplina pode oferecer à sociedade. Segundo a autora:

“Na relação Saúde-Educação o processo saúde-doença é importante para entender que a aprendizagem é um processo dinâmico e complexo e que não se esgota em analogias mecânicas ou definições idealíticos-estáticas. Muitos profissionais de saúde que compartilham da visão mecanicista fazem diagnósticos de doenças em crianças para explicar o fracasso escolar, colocando a culpa apenas no aluno, no seu ambiente familiar, seu cérebro, sua fragilidade, sua maturidade cognitiva e emocional, e isentando o sistema escolar. Essas tentativas de encontrar uma causa orgânica para o mau rendimento escolar dão possibilidades da medicalização do fracasso escolar, ou seja, a busca de causas e soluções médicas para os problemas sociais” (p. 6 e 7). 


Signor (2013) elucida que crianças que ganham este diagnóstico começam a apresentar uma auto-imagem distorcida e apresentam verbalizações a respeito de si mesmas como “eu não consigo”, “sou agitado, por isso não paro”, “escrevo tudo errado”, “ninguém gosta de mim”, “sou anormal”, “sou doente”. Dessa forma, certos comportamentos disruptivos ganham permissão para acontecer e a autoestima da criança passa a ser prejudicada. Elas se vêem como desajustadas e não aprendem a superar suas limitações. Para Sousa-Neta (2006) a auto-eficácia exerce importante influência no desempenho acadêmico, que também é influenciada por este, o que implica no desenvolvimento da criança como um todo. Perceber-se como capaz ou incapaz pode trazer impacto nos processos de motivação, auto-regulação, auto-percepção e nas expectativas de resultados nas escolhas e interesses. E, segundo a autora, as pesquisas que analisam o impacto do diagnóstico de TDAH na vida das crianças mostram que estas apresentam respostas de baixa auto-eficácia em tarefas escolares.


É importante lembrar que, fora da sala de aula, estas crianças inquietas e desatentas também apresentam dificuldades de interação dentro de casa. Para compreender este fato de maneira sócio-cultural, Salgado, Pereira e Souza (2005) alertam para o uso excessivo da televisão como entretenimento, já que estudos recentes têm apresentado que ao deixar uma criança assistindo televisão por longos períodos de tempo, ela se torna privada de atividades importantes para seu desenvolvimento cognitivo, social, comunicativo e motor, fazendo com que a tevê seja considerada um dos fatores principais no desenvolvimento de dificuldades referentes ao suposto “déficit de atenção” (para mais detalhes sobre o uso da televisão, clique aqui). 


Dentro deste contexto, a jornalista Pamela Druckerman (2013) decidiu realizar uma pesquisa intercultural, ao notar que o comportamento das crianças francesas era nitidamente mais polido, menos ansioso, mais atento e comunicativo quando comparado ao comportamento infantil americano (país com a maior incidência do mundo de diagnósticos de TDAH, enquanto na França o índice não chega a 0,5%). Ao se infiltrar na cultura francesa, Druckerman observou estratégias parentais que iniciam-se desde os primeiros meses de vida como, por exemplo, dar uma longa pausa antes de acolher o bebê chorando no berço, assim, ele tem a oportunidade de “se virar sozinho”. Os franceses ensinam as crianças a cozinhar desde os 2 anos, atividade que envolve concentração, atenção, paciência, controle motor, além de desenvolver a auto-confiança, vocabulário e alimentação saudável nos filhos. Os limites na educação são rígidos, coerentes e sistemáticos, porém, dentro destes limites, os franceses valorizam o “despertar” da infância, deixando a criança solta para provar o mundo com liberdade, sem atividades pré-programadas até os 4 anos de idade. Ou seja, eles se preocupam menos em fazer a criança evoluir mais rápido que os outros colegas, em estimular excessivamente os filhos com atividades extra-curriculares, como fazem os americanos. Segundo a autora, os pedagogos franceses explicam que a ansiedade para que os filhos evoluam depressa impõe muitos limites e atividades tediosas, excluindo o “despertar” para os sentidos e o desenvolvimento de conceitos pela intuição. Assim, as crianças francesas aprendem a se estimular sozinhas, aprendendo a lidar com o tédio e com a espera pelo reforço de forma natural.


A educação francesa também conta com um apoio do estado diferenciado, onde creches públicas possuem profissionais especializados, com formação acadêmica para o cuidado de bebês e crianças (curso superior que não existe no Brasil), os quais ajudam, desde os 3 meses de idades, na introdução de alimentação saudável, desfralde, retirada da chupeta, comunicação verbal e com atividades livres que facilitam o “despertar” dos sentidos. Porém, embora questões políticas como estas façam a diferença na educação dos pequenos franceses, cabe a nós, profissionais da saúde e educação, observar e aprender com o que eles têm a oferecer. Alvarez (2015) explica que “o que muitas vezes falta na escola é explorar as outras possibilidades de aprendizado”. Ao notar uma criança desestimulada com uma tarefa laboriosa “os educadores podem criar uma sucessão de desafios menores, sem diminuir a meta final” (p.36). Pesquisas recentes mostram que, durante uma aula expositiva comum, o professor fala durante cerca de 90% do tempo, exigindo do aluno um nível de atenção ao qual ele não está adaptado. Já estudar em dupla ou em grupo, como acontece de praxe na França, excluindo as carteiras individuais em 100%, obriga os estudantes a conversar sobre o material, ajudar uns aos outros, a pensar criticamente, o que facilita a memorização do conteúdo drasticamente (Alvarez, 2015). 


Além disso, Alvarez (2015) explica que o conteúdo deve se adequar mais ao desenvolvimento cerebral das crianças e que atividades como, por exemplo, a pré-alfabetização que acontece desde os 2 anos no Brasil, força a criança a utilizar regiões ainda não mielinizadas do cérebro, deixando o aluno desestimulado, preguiçoso e com baixa auto-estima. “É importante proporcionar desde cedo às crianças experiências agradáveis em sala de aula” (p. 36), para que elas se sintam estimuladas a ir à escola e livres ao aprender. A competição entre os colegas (ou entre pais) e o excesso de estimulação mantêm as crianças desmotivadas e ansiosas, pois as forçam a realizar tarefas incompatíveis com seu amadurecimento biológico.


Contudo, surge a importante questão: É possível afirmar, de fato, a existência do TDAH como uma patologia cerebral, com necessidade de medicação?

Dizer que não existe uma patologia é algo bastante complicado, diante de pesquisas tão inconclusivas. Porém, o que é possível afirmar com mais firmeza é que existe sim uma prática cultural infanto-juvenil muito diferente do que se via há tempos atrás e, com isso, profissionais da saúde e educação têm um desafio amplo pela frente: desenvolver ferramentas para lidar com esta nova infância que está surgindo. Quanto à medicação, mais especificamente a Ritalina, o que as pesquisas têm mostrado é que seus efeitos colaterais são tão fortes que acabam prejudicando o desenvolvimento de outros tipos de habilidades. Ao receber a prescrição deste medicamento, cabe aos pais pedir uma segunda, terceira, ou quarta opinião antes de utilizá-la e, mais importante ainda, é buscar um profissional especializado (pedagogos, psicólogos comportamentais, psicopedagogos, neuropsicólogos) que possuam ferramentas de estimulação adequadas para estimular habilidades em déficit, qualquer que seja ela.


Além disso, como apontado por Luria (1991, citado em Signor, 2013), vale ressaltar, que há sim patologias específicas na área da atenção/comportamento, decorrentes de lesões observáveis nos lobos frontais do cérebro e, dessa forma, os sujeitos apresentam ampla dificuldade de concentração de controle de reações comportamentais em situações específicas. Porém, casos patológicos, segundo o autor, são raros, bastante limitados e apresentam dificuldades bem diferentes do que é relatado em categorias diagnósticas TDAH citadas anteriormente. Luria (1991, citado em Signor, 2013) explica que o comportamento do paciente que apresenta este tipo de lesão “deixa de ser controlado por um programa verbal motivado, ficando sob controle de fatores interpostos e tornando-se mais primitivo em suas características”. Além disso, o autor explica que, nesses casos, o paciente apresenta a fala distorcida, “mesmo quando o paciente conserva a formulação verbal correta da instrução (...), em geral ele nunca pode comparar seu desempenho atual com sua intenção original, não tem consciência dos erros que comete e não faz qualquer tentativa para corrigi-los” (Luria, 1988, p.214).

Para Luria (1988, ct. Signor, 2013), não se pode confundir a agitação e desobediência natural de uma criança com padrões patológicos advindos desse tipo de lesão cerebral. E, de acordo com a pediatra Moysés (em entrevista à Globo News), mesmo nestes casos específicos o uso da Ritalina é duvidoso, devido a sua extrema toxicidade e dependência.


Finalmente, acima de qualquer polêmica, pode-se afirmar que o primeiro passo para lidar com as dificuldades das crianças em geral, é compreender que nenhum transtorno de comportamento pode ser interpretado como tendo uma causa única. Os comportamentos humanos são multideterminados e as respostas cerebrais não têm surgimento espontâneo, isto é, sempre há um estímulo no ambiente que elicia suas reações. Como ressalta Moysés (2001, citado em Signor, 2013) “ao afirmar que o problema é social, corroboro a visão de que a criança não é um organismo independente, isto é, não é um cérebro apartado das condições socioculturais que a cercam. O cérebro é um órgão dinâmico, flexível, que se modela na vigência das experiências de cada sujeito” (p. 1149). 

Ademais, caberia às escolas, muitas vezes atreladas a práticas pedagógicas pouco eficazes, que não se adéquam à diversidade de sua clientela, a assumirem um papel mais dinamizador e condescendente com as particularidades de seus alunos, adaptando-se ao que a cultura da informação rápida ensina aos jovens de hoje. E por fim, poderia ser sugerido aos pais que se vêem assustados com posturas desobedientes e distraídas de seus filhos, buscarem ajuda, informação (mais de uma opinião, de preferência), troca de experiências e, acima de tudo, prestarem mais atenção a eles, como seres individuais, compreendendo suas necessidades e, sempre que possível, se adequando a elas. Em casos como esse, a persistência é o mais importante. Afinal, são estas crianças criativas e inquietas que poderão, quem sabe um dia, fazer a diferença em um mundo com mudanças tão arrebatadoras.



Links interessantes:

Entrevista completa com Ana Maria Moysés, médica pediatra, umas das maiores pesquisadoras sobre TDAH no Brasil atualmente. 

Artigos do blog: 




Documentário: Ser e Ter. Apresenta a rotina de uma sala de aula francesa.

Filme em média metragem "Criança: a alma do negócio" explica os prejuízos da televisão na vida das crianças.


Referências Bibliográficas

Alvarez, L. (2015). O Cérebro na Sala de Aula. Revista Educação. Ano 18, n. 214. Ed.: Segmento.

Caliman, L. V. (2008). O TDAH: entre as funções, disfunções e otimização da atenção. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 13, n. 3, p. 559-566, jul./set. 

Druckerman, P. (2013). Crianças Francesas não Fazem Manha. Ed. Objetiva: São Paulo.

DuPaul, G. J. & Stoner, G. TDAH – estratégias de avaliação e intervenção. Ed. MBooks. 

Freitas, M. T. (2007). Bakhtin e a Psicologia. In: Faraco, C. A,; Tezza, C,; Castro, G. (org.). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Ed. UFPR,.

Kantowitz, B., Roediger III, H. & Elmes, D. (2006). Psicologia Experimental. Ed. Thomson: São Paulo.

Richter, B. R. (2012). Hiperatividade ou Indisciplina? O TDAH e patologização do comportamento desviante na escola. Dissertação não publicada do Programa de Pós-Graduação em Educação e Ciências, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Salgado, R. G., Pereira, R. M, & Souza, S. J. (2005). Pela Tela, Pela Janela: questões teóricas sobre infância e televisão. Cad. Cedes, Campinas, vol. 25, n. 65, p. 9-24, jan./abr.

Santos, L. de F. & Abreu-Vasconcelos, L. (2010). Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade em Crianças: uma revisão interdisciplinar. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Out-Dez 2010, Vol. 26 n. 4, pp. 717-724.

Sousa- Neta, S. B. A. , (2006). Os efeitos do diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) no ambiente escolar. Monografia não publicada da biblioteca do UniCeub, Brasília – DF.

Shmitz, T. R., Polanczyzk, G. V. & Hutz, M. (2003). Em Rohde, L. A., Mattos, P. & cols. Princípios e Práticas em TDAH. Ed. Artmed: São Paulo.

Signor, R. (2013). Transtorno de déficit de atenção/ hiperatividade: uma análise histórica e social. RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 4, p. 1145-1166, 2013.

Skinner, B. F. (1953). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes.





Comentários

  1. Bom dia, sou estudante de psicologia e descobri seu blog em uma pesquisa de trabalho para o curso de Analise comportamental nas empresas, vi algumas dinâmicas que você postou e gostaria de saber se alguma delas serve para empresa. Obrigado desde já !

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  2. Muito bom! Hoje o TDAH é encarado como uma "desculpa" para não lidar com o comportamento do filho ou para não dispor do tempo como pai para criança, "já que a criança não teria jeito mesmo". Ter um filhos envolvem ter tempo para observa-los.

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